O portal de identidade e missão da PUC Minas.

O ateliê de produção de cordeis: em busca do humano e da humanidade

O ateliê de produção de cordéis: em busca do humano e da humanidade – prática de extensão com as recuperandas da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) em Belo Horizonte

Por Adauci de Morais Silva e Robson Figueiredo Brito

RESUMO: Este artigo descreve uma prática de extensão desenvolvida no Projeto “Em busca do Humano e da Humanidade” do curso de Filosofia, vinculada ao Programa APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) da Pró-Reitoria de Extensão (Proex) da PUC Minas, cuja atividade foi realizada com recuperandas em cumprimento de pena na unidade da Gameleira, em Belo Horizonte. A proposta surgiu da experiência de um dos extensionistas que, em diálogo com o professor coordenador, sugeriu a criação de um ateliê para promover a produção dialógica de cordel com as mulheres que participaram do projeto quinzenalmente. A fundamentação teórica dessa ação extensional ancora-se na perspectiva dos estudos da linguagem do Círculo de Bakhtin que toca em questão relacionadas à produção dos modos de dizer dos falantes/escreventes sempre em interação dialógica marcadamente dentro de um contexto sociodiscursivo e ideológico. O principal objetivo deste trabalho é mostrar como a criação dos cordéis, em colaboração com os estudantes do projeto de extensão, pode revelar aspectos da identidade, da subjetividade, da intersubjetividade e da história sociocultural das recuperandas, refletindo sua visão de mundo dentro e fora do cárcere. Os resultados dessa experiência de extensão conduzem à seguinte conclusão: à medida que as recuperandas se apropriam de suas vozes nas rodas de conversa dessa prática, sua escrita adquire
materialidade textual e discursiva, revelando como o humano e a humanidade podem ser expressos poeticamente.
Em um ambiente como a APAC, isso proporciona uma nova possibilidade de recuperação para essas mulheres que
estão cumprindo pena e que muitas vezes não teriam a oportunidade de serem escutadas de modo qualificado como nessa práxis extensionista.

Palavras-chave: extensão universitária; ateliê de cordéis; literatura.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta e descreve uma experiência de prática de extensão desenvolvida no Programa Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) da Pró-Reitoria de Extensão (Proex) da PUC Minas, singularmente desenvolvida no Projeto “Em busca do Humano e da humanidade” sob a reponsabilidade do Curso de Filosofia.

Esse projeto atua na APAC feminina, quinzenalmente, para trabalhar de forma dialógica a reflexão e o aprofundamento de questões da realidade humana, sociocultural, sociodiscursiva e religiosa na contemporaneidade com as recuperandas que estão em cumprimento de pena no regime semiaberto. Esse trabalho concretiza-se por meio da construção de um ateliê de cordéis com as recuperandas que participam do Projeto.

A ideia de produção do ateliê de cordéis está ligada à criação do Laboratório de extensão, práticas, pesquisas, publicações acadêmicas e internacionalização (Lepppai) da Proex que tem por expertise gerar práticas investigativas e de extensão por meio de ateliês que englobem oficinas relacionadas às metodologias ativas de ensino, pesquisa e extensão.

A prática de extensão desenvolvida no projeto coordenado pelo curso de Filosofia com a participação do curso de Teologia sob a forma de ateliê irá oportunizar um diálogo que possa favorecer a interação discursiva entre os diversos atores envolvidos nesse encontro (alunos extensionistas do curso de Filosofia e Teologia que estão em preparação para a vida sacerdotal) e, por essa razão, busca a efetivação dos direitos das mulheres em situação de privação de liberdade, intervindo sobre os processos de humanização e de preparação para o retorno das
recuperandas ao convívio social.

O sentido de ateliê é tomado como um lugar de produção de práticas discursivas com as recuperandas para registrar em forma de versos poéticos a expressão das diversas situações que podem ocorrer no seu cotidiano, especialmente as que se relacionam com a convivência e a formação de laços sociais e interpessoais, particularmente com o recurso da literatura de cordel. De acordo com relatos das “apaquianas”, a convivência social entre elas é marcada pela tranquilidade, e elas participam regularmente de formações em diversas áreas do conhecimento. Elas também cumprem uma jornada de trabalho interna, diariamente, que envolve a fabricação de hóstias e outras demandas do setor apaquiano. São responsáveis pela organização, limpeza e funções locais como cozinhar, lavar, passar roupas e cronometrar as atividades internas.

Com a intenção de conduzir as apaquianas a refletir sobre a sua história de vida, os extensionistas do Projeto Em busca do Humano e da Humanidade, propuseram às recuperandas a escrita e a construção de cordéis que expressam as vivências e experiências do ser feminino tanto dentro quanto fora do cárcere. Essa iniciativa não apenas visou promover a expressão criativa das mulheres privadas de liberdade, mas também proporcionar um espaço para que compartilhem suas narrativas, dificuldades e reflexões sobre a condição feminina na sociedade e no sistema prisional, especialmente no contexto do método apaquiano.

Ao permitir que as recuperandas sejam autoras de suas próprias narrativas, o Projeto promove a valorização e o reconhecimento de suas vozes e experiências, contribuindo assim para sua reintegração social e seu empoderamento pessoal.

2 UM POUCO DE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para embasar teoricamente e metodologicamente a produção dos versos poéticos pelas recuperandas no Ateliê de Cordéis, recorremos aos estudos da literatura e aos estudos da língua(gem) do Círculo de Bakhtin3 para demonstrar que nossos encontros, nesse projeto com as recuperandas, constituem um processo de dialogia. Segundo Volóchinov (2017), a palavra, em sua essência, é um ato bivocal, que exerce influência tanto sobre quem a pronuncia, quanto sobre quem a recebe. Ela é um produto das inter-relações discursivas entre o ouvinte e o falante, permitindo que as pessoas se enxerguem a partir da perspectiva do outro e da coletividade.

Sob esse enquadre pode-se afirmar que a palavra funciona como uma ponte que conecta o eu ao outro, fornecendo suporte tanto ao interlocutor quanto ao emissor, promovendo interações mesmo entre atores sociais de diferentes comunidades discursivas. É nesse contexto que o projeto de extensão com as recuperandas da APAC busca promover um diálogo interativo, reflexivo e humanizado, incentivando a escrita como meio de expressão e desenvolvimento pessoal.

Vale ressaltar que no ano de 2018, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro tornou a literatura do cordel um patrimônio cultural do Brasil. Esse tipo de literatura traz consigo uma riqueza de conhecimento, história e enredo. Pode-se dizer que os cordéis são usados como uma ferramenta de comunicação entre todas as classes sociais4.

Na história do Brasil, podemos identificar renomados poetas que alcançaram a fama por meio da criação de cordéis. Alguns exemplos notáveis incluem Apolônio Alves dos Santos, Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde. Esses poetas contribuíram significativamente para a disseminação da cultura popular nordestina por meio de suas obras, que frequentemente abordavam temas como a vida no sertão, as lutas do povo
nordestino e os valores da região.

Considerando esses elementos, é importante evidenciar que o papel da mulher na literatura brasileira contemporânea tem crescido significativamente para demonstrar como a presença feminina se desenvolveu nesse contexto, o que nos permite compreender como as mulheres foram gradualmente inseridas na história cultural da literatura de cordel no Brasil. Destacam-se as contribuições de escritoras como Jarid Arraes, Paola Tôrres, Auritha Tabajara, Izabel Nascimento, Julie Oliveira e Ivonete Morais. Essas cordelistas, como são conhecidas, abordam em suas obras questões sociais, culturais e interdisciplinares, buscando promover e posicionar essa arte para marcar a presença do feminino nesse campo e, assim, incentivar outras mulheres, servindo de inspiração para as que desejam se arriscar e se aventurar nas rimas e na escrita.

Atualmente esse movimento se encontra em vários estados do Brasil e tem o apoio de cerca de 1.500 mulheres unidas. O número, ainda que pequeno para um país de milhões de pessoas, já significa o princípio de uma mudança social. Grandes cordelistas se destacam nacionalmente como Dalinha Catunda e Izabel Nascimento.

3 A ESCUTA DAS PALAVRAS DAS RECUPERANDAS E O COMEÇO DA PRODUÇÃO DOS CORDÉIS

A produção de cordéis na APAC Feminina ocorreu durante as visitas quinzenais do Projeto Em Busca do Humano e da Humanidade e resultou no despertar e no aprimoramento do fazer literário das recuperandas. Inicialmente, foi realizada uma contextualização histórica sobre a originalidade dos cordéis e seu surgimento no Brasil, destacando a riqueza da linguagem, o uso de ironia, sarcasmo, hipérbole, e a presença marcante da rima, entre outras características intrínsecas desse gênero. Os extensionistas mostraram às recuperandas que os cordéis possuem uma linguagem universal, capaz de permitir que elas transmitam e comuniquem as suas próprias histórias, sentimentos e sonhos.

À medida que as recuperandas escreviam os seus versos, os extensionistas orientavam a utilização de jogo de palavras que rimassem a cada final de frase, por exemplo: “amor que rima com dor”. Durante os encontros, as recuperandas expressaram seus pensamentos sobre diversos temas, como vida, Apac, amor, família, espiritualidade e trabalho. A partir dessas reflexões, elas começaram a escrever versos que gradualmente se transformaram em poemas e cordéis. Abaixo estão alguns exemplos elaborados pelas próprias recuperandas:

“Meu nome é Cláudia5,
tenho uma história para contar;
Uma moça nova de uma vida humilde,
Eu sou mesmo de arrasar.
Tenho 27 anos,
E gosto muito de festejar, de sair, viajar e sonhar.
Vivo contando os dias
Para a tão sonhada liberdade chegar;
Pois prezo muito a minha família
E ela está a me esperar”.

“O amor é infinito ele cresce, estica e nunca finaliza.
Ele é recíproco igual a gente mesmo.
Ele brota igual uma semente,
que enraizada penetra, germina e frutifica.
Tem sua finalidade de entrar no coração das pessoas para deixar estragos,
mas fica tão intenso que acabamos semeando com a sensibilidade.
Para sermos amados temos que aprender o sentido do amor.
Amor é amar e ser amado por uma só lógica.
Amores diversos é amor também. Ser amada por um amor dos amores e amar a mim mesma”.

Durante o processo de criação dos cordéis, as recuperandas notaram similaridades nos enredos e nas rimas à medida que as palavras iniciais e finais nas frases dos cordéis criavam uma ligação harmônica e vocálica. Essa percepção ocorreu durante as oficinas e discussões em rodas de conversa6 nas quais havia uma captação tanto por parte dos extensionistas, quanto das recuperandas e proporcionava um diálogo no qual ambos possuíam uma igualdade de falar e ser ouvido. Ao mesmo tempo era levada em consideração a linguagem cultural e a diversidade linguística regional de cada participante dos encontros. Elas criaram cordéis que representaram o emprego da linguagem em funcionamento expressando um modo de comunicar e transmitir sua visão de mundo e realidade7.

No Ateliê, os extensionistas trabalharam com as recuperandas na produção dos cordéis com o objetivo de mostrar a elas que expressar uma linguagem não é apenas dominar um código específico. Existem diversas maneiras de se fazer entender por meio da comunicação escrita sem se ater a uma determinada formalidade. Hanks (2008, p. 52) recorda que “[…] a padronização e a legitimação sancionam determinadas maneiras de falar, acaba recompensando
umas, porém silenciando outras”. Nesse contexto, foi abordado com elas que os cordéis representam uma forma de comunicação desprovida de uma rigidez e uma legitimidade específicas da linguagem formal, uma vez que o modo de empregar a língua pode refletir a diversidade linguística do autor dos versos. Simultaneamente, é comum utilizar-se o eufemismo nessa criação literária, adotando um estilo de linguagem que suaviza o significado de termos e expressões para tornar as rimas mais agradáveis e harmoniosas. Portanto, podemos afirmar que os cordéis constituem uma expressão literária que transcende a simples transmissão de informações, sempre contendo uma narrativa, um enredo e uma vivacidade que se desdobram entre suas estrofes.

Segundo Durão (2020), a literatura tem a capacidade de promover o aprimoramento moral, contribuir com o ensino e evidenciar o belo em si. Portanto, os extensionistas optaram por trabalhar com os cordéis de forma dialógica, reconhecendo a capacidade da literatura em promover conhecimento, transmitir ensinamentos dos valores e expressar sentimentos conectados à vida e à história pessoal. Esses elementos foram progressivamente desenvolvidos e proporcionados às recuperandas por meio de discussões filosóficas, teológicas, humanas e existenciais.

O cordel, como forma literária, tem o poder de revelar aspectos sui generis das pessoas e expressar sua beleza e talento. Com essas premissas em mente, foi implementado um programa de acompanhamento, na produção do Ateliê de Cordéis tanto em grupo, por meio de rodas de conversa coletivas, quanto de forma individual, com as recuperandas. Elas, sempre em diálogo com os extensionistas participantes do Ateliê, foram recebendo instruções personalizadas durante a escrita dos versos e a estruturação de seus poemas e cordéis durante as oficinas.

Na dinâmica social, observa-se um silêncio em relação às mulheres em processo de reabilitação e reintegração social. Durante esse acompanhamento, o objetivo foi garantir que as vozes das recuperandas fossem representadas por meio da arte literária. Nesse sentido, é importante considerar a teoria do sujeito subalterno, definido por Spivak (2010, p. 13) como aquele cuja voz não é ouvida: “O termo subalterno descreve as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, de representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. É possível relacionar o conceito de subalternidade de Spivak à realidade enfrentada pelas recuperandas da APAC, que compartilham sentir-se limitadas e excluídas pela sociedade e pelas estruturas legais, as quais muitas vezes não permitem que expressem suas vozes com a liberdade
desejada.

Os estudantes que participam desse projeto de extensão buscaram, por meio dos cordéis, possibilitar que as recuperandas manifestassem a sua voz diante do silêncio social presente nos sistemas penitenciários brasileiros. Essa literatura é vista como uma oportunidade e ferramenta de solidariedade, diálogo, aliança e voz, permitindo que todos conheçam a realidade dessas mulheres. É relevante mencionar que a APAC contribui significativamente para esse objetivo, ancorando-se em princípios de religiosidade e em doze elementos fundamentais: participação da comunidade; o recuperando ajudando o recuperando; trabalho; religião; assistência jurídica; assistência à saúde; valorização humana; família; o educador social e o curso para sua formação; Centro de Reintegração Social (CRS); mérito; e a Jornada de Libertação com Cristo (Os 12 […], c2024).

O trabalho com os cordéis junto às recuperandas é marcado por uma oralidade aberta e livre em rodas de conversa, além de uma textualidade expressa mediante a escritura de versos. Segundo Hanks (2018), a textualidade se caracteriza pela qualidade, coerência e conectividade de um texto. Nesse sentido, a textualidade dos cordéis apresenta coerência entre as estrofes e uma conectividade dotada de significado em sua elaboração.

Nas rodas de conversa, os extensionistas estabeleceram um diálogo de igualdade com as apaquianas, conhecendo cada uma por meio da fala. Como afirma Macedo (2021, p. 38), “é importante conhecer a vida e a realidade dos sujeitos” para desenvolver um bom trabalho de interação, socialização e cooperação. Simultaneamente, foi discutido com as recuperandas a compreensão de que:

[…] a literatura, como conteúdo humano sofisticado, não monolítico, não
unidirecional, produzido pelo conjunto da humanidade no processo histórico […]
permite justamente ir além das aparências fenomênicas mais imediatas, capturando a
essência do real, em suas contradições (Macedo, 2021, p. 41).

Podemos afirmar que o cordel, como forma de literatura, é capaz de “fomentar um projeto de resgate do próprio espaço comunitário, redescobrindo produções orais e escritas esquecidas […] em uma pesquisa literária (‘científica’) de campo” (Macedo, 2021, p. 40). Com essa compreensão, os extensionistas buscaram, no Ateliê com as recuperandas, resgatar produções poéticas como o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís Vaz de Camões (1524- 1580), e também poemas do poeta brasileiro Augusto dos Anjos.

4 OS CORDÉIS COMO ARTE, LITERATURA – A INTERAÇÃO DISCURSIVA E O FAZER AS PALAVRAS-ARTE REFLETIREM O HUMANO E A HUMANIDADE NO UNIVERSO FEMININO

É fundamental ressaltar que o cordel é uma forma de arte. A arte, em sua essência, engloba um processo de criação, produção e fabricação, pelo qual o ser humano aprimora sua capacidade de imaginação, observação, raciocínio e criatividade8. Nesse contexto, a arte possui o poder de influenciar o desenvolvimento e aprendizado das pessoas, além de organizar pensamentos, habilidades, tensões e hábitos, entre outros aspectos.

O cordel possui um grande potencial para promover o desenvolvimento humano, além de contribuir para a interação discursiva e o dialogismo por meio da linguagem e da literatura. Ao se envolverem na produção e apreciação de cordéis, as mulheres em privação de liberdade têm a oportunidade de expandir e expressar suas emoções, sua visão de mundo e sua própria subjetividade. Dessa forma, o cordel se revela não apenas como uma forma de entretenimento, mas também como um instrumento de crescimento pessoal e coletivo.

É importante mencionar que o diálogo entre os atores sociais que compõem o Ateliê de produção de texto literário (extensionistas e apaquianas) é fundamental para formar uma interação sociodiscursiva. Nesse processo, é considerada a situação social das apaquianas, seu processo de interação e de produção de enunciados, e as condições de fala em que a recuperanda se coloca, sempre buscando inseri-la em igualdade com seu interlocutor. A função da palavra em seus discursos é transformada pela escrita em cordéis literários, que manifestam o seu lugar
de dizer. 

No Brasil, especialmente no Nordeste, o cordel é exibido como uma literatura popular originária da oralidade, já que foi por meio das narrativas orais, cantorias e contos que nasceram os primeiros panfletos de cordéis. O cordel é estimado como um gênero literário, sendo organizado em versos, no qual, a rima e a oralidade são suas principais características. Os cordéis possuem uma marca de linguagem coloquial, que acarreta consigo o humor, o sarcasmo, a ironia e a hipérbole como modo de transmitir e abordar assuntos históricos que muitas vezes são factuais ou ficcionais9.

Não se tem o conhecimento exato sobre a origem da literatura de cordel no Brasil e são escassos os relatos que se referem a sua chegada ao nordeste do Brasil. Segundo Tavares Junior (1980, p. 18), o Nordeste e o Norte foram as regiões que mais abraçaram a novidade da oralidade de cordel vinda dos colonizadores. Com o tempo e devido às migrações de nordestinos a outras regiões do Brasil, que levavam consigo as suas tradições culturais, acabou
se espalhando para várias outras regiões brasileiras.

A literatura de cordel é um modo de poesia popular, originalmente oral, e depois estampada em panfletos e folhetins rústicos. São sempre escritos em configuração rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, que é um estilo de gravuras artísticas. Os autores dos cordéis, chamados de cordelistas, recitam seus cordéis de modo melódico e ritmado, ocasionalmente acompanhados de instrumentos de viola. Os cordéis eram:

[…] um veículo de informação e divertimento. As ocorrências marcantes da
comunidade circunvizinha, geralmente os cordelistas as registravam em forma de
história em verso. Foi, portanto, o cordel um veículo de comunicação importante.
Mesmo os cordéis que narravam histórias misteriosas e fantásticas, não baseadas em
fatos reais (Xavier, 2002, p. 21).

À medida que os extensionistas refletiam sobre os elementos do cordel e traziam exemplos de escritores, como já mencionados, para as rodas de conversa, as apaquianas se encantavam com a linguagem informal e, muitas vezes, marcada pela simplicidade do cotidiano. O que é notório é que

[…] no poema a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela
redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza é
total e afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos. A
palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus
sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de
explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a (Paz,
1982, p. 28-29).

Assim, a linguagem poética, além de ser literatura, é uma arte que pode facultar a inculturação na sociedade atual. Não é diferente a intenção da prática extensionista ao proporcionar às recuperandas a formação no Ateliê de cordel. Os cordéis permitem uma liberdade de expressão e linguagem, oferecendo uma forma flexível de comunicação e compreensão para todas as mulheres que estiveram presentes conosco nesse processo de construção dessa forma poética tão rica.

Segundo Compagnon (2009), a literatura pode transmitir mais verdades do que a filosofia e a história, pois descreve a natureza e o homem com fidelidade.

[…] a literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns
dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir experiência dos outros, aqueles
que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas
condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos
e que seus valores se distanciam dos nossos (Compagnon, 2009, p. 60).

Na abordagem histórica sobre o cordel com as participantes do Ateliê, foi explicado que os cordéis, inicialmente, eram folhetos suspensos em cordões para serem vistos e vendidos como uma forma de comunicação e informação. A sua origem possivelmente remonta à Idade Média, quando os trovadores divulgavam nas praças antigas histórias, romances e epopeias ao povo. Assim, ao contrário do que muitos acreditam, o cordel não é uma invenção brasileira.

No Brasil, o cordel se equivale a poesia popular em versos, retratando ocasionalmente temas como sofrimento, amor, política entre outras dimensões. Porém, “como toda produção cultural, o Cordel vive períodos de fartura e de escassez. Hoje existem poetas populares espalhados por todo o País, vivendo em diferentes situações, compartilhando experiências distintas” (Marinho; Pinheiro 2012, p. 17). Ao mesmo tempo, os folhetos hoje não podem ser considerados tão somente como “um informativo jornalístico ou de caráter pragmático como alguns querem considerar” (Pinheiro, 2007, p. 39).

No início do século XX, uma época na qual os meios de comunicação em massa não estavam presentes, como nos dias de hoje, o cordel se espalhou por grande parte do Brasil. No entanto, até cerca de 1970, as mulheres cordelistas permaneciam invisíveis na sociedade, sem publicar oficialmente sua arte. Nesse contexto, o cordel era predominantemente associado ao universo masculino, enquanto o papel das mulheres era subestimado devido às normas sociais vigentes. Muitas mulheres dessa época enfrentaram essa desigualdade ao tentar publicar cordéis, recorrendo ao uso de pseudônimos masculinos para evitar restrições ou discriminação.

No ano de 2020, a cordelista Izabel Nascimento, em uma palestra no III Encontro de Cordelistas da Paraíba, falou sobre o tema “O cordel como ferramenta de transformação social”, no qual fez um recorte e recordação histórica do cordel no Brasil para apontar o elemento forte do machismo, que também marcou e ocorre nesse caráter literário que são os cordéis (Queiroz, 2006). O seu intuito principal era valorizar e respeitar a contribuição da mulher como
protagonista da literatura de cordel no Brasil. Queremos ressaltar que, ao final da escrita deste artigo, recebemos a notícia de que fomos agraciados com a diplomação, por eleição das recuperandas neste primeiro semestre de 2024, como o projeto de extensão que trouxe a elas a sororidade.

Ao incentivar a criação de cordéis, o Projeto não apenas resgata tradições culturais, mas também oferece um espaço seguro para que as mulheres expressem suas emoções, experiências e visões de mundo. Essa prática fortalece os laços comunitários, estimula o desenvolvimento pessoal e coletivo, e reforça a importância da empatia e do respeito mútuo. Desse modo, ao sermos reconhecidos como promotores da sororidade, o nosso trabalho extensionista demonstra que, mesmo em um ambiente adverso como o carcerário, é possível construir caminhos de reintegração social e valorização humana.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2018. p. 09-33

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Literatura de Cordel ganha título de Patrimônio Cultural Brasileiro. Brasília: IPHAN, 19 set. 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4833/literatura-de-cordel-e-reconhecida- como-patrimonio-cultural-do-brasil. Acesso em: 22 abr. 2024.

BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução 510/2016. 07 abr. 2016. Diário Oficial da União. Brasília, DF: Ministério da Saúde. 24 maio 2016.

BRITO, R. F.; MOREIRA, I. S. Rodas de conversa no programa APAC: interações com as recuperandas no sistema de justiça restaurativa em Minas Gerais experiência de extensão universitária. In: SARAIVA, L. M.; SANTANA, W. K. F. (org.). Educação e Práticas interdisciplinares: linguagens e diálogos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023, v. 2. p. 259-273.

COMPAGNON, Antonio. Literatura para que? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

DURÃO, F. A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020.

HANKS, W. F. Língua como Prática social das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2008.

Nam vitae dolor sed libero porta eleifend non sed nulla

Nam convallis

Nam vitae dolor sed libero porta eleifend non sed nulla

Nam vitae dolor sed libero porta eleifend non sed nulla

Nam convallis

Nam vitae dolor sed libero porta eleifend non sed nulla

Fale conosco

Av. Dom José Gaspar, 500 – Prédio 02
Coração Eucarístico | Belo Horizonte, MG
CEP: 30.535-901
(31) 3319-4933
sincronos@pucminas.br