O artigo pretende demonstrar que, de um ponto de vista estritamente psicanalítico, o processo de expressar-se na arena pública é essencial para que o sujeito se autoconheça, e pode ser um mecanismo eficaz para vencer o narcisismo, que, aliado ao fenômeno das massas, pode dar origem a discursos de ódio e a discursos ofensivos. Isso pode ser uma boa razão para se autorizar a maior amplitude possível de discursos, desde que não induzam
imediatamente à violência contra determinados grupos. Nesse ponto, convergem as teorias liberais do Direito e a teoria psicanalítica – e, como esta, exigem a distinção entre discursos ofensivos (e palavras que machucam) e discursos de ódio em sentido estrito, isto é, os que intencionalmente visam a induzir, de maneira imediata, à violência física contra determinados grupos sociais. Ao lançar mão do instrumental da Psicanálise freudiana,
sobretudo no modo como é reinterpretado por Jill Gentile, e do liberalismo de John Stuart Mill, este artigo pretende partir da relação entre violência e sociedade e do narcisismo como origem do ódio social para repensar a amplitude dos discursos permissíveis numa sociedade democrática.
Violência e discurso de ódio
A violência parece ser ubíqua na natureza e, em especial, na vida humana. Seja por causa das agressões a que o ego está sujeito pelo meio, seja por sua própria pulsão de destruição, a vida psíquica e a existência física encontram-se sempre em risco, ameaçadas constantemente por um princípio desestruturador. De violações sexuais e da integridade corporal, de abusos de autoridade, passando pela agressão de patógenos, pela fome e por cataclismos e desastres naturais, a fragilidade de tudo quanto é vivo torna-se um problema para o ser
humano na medida em que ele se conscientiza de sua finitude e limitação.
Dois dentre os mecanismos para lutar contra essa iminente aniquilação foram, de um lado, a organização do aparelho psíquico sob a forma do ego e, de outro, a organização da própria sociedade sob a forma de civilização. Somente assim foi possível ao ser humano lutar contra o poder da natureza, dos outros e, em certo sentido, das próprias pulsões, ainda que a custo de neuroses que se constroem com base nas limitações impostas por aquelas
organizações (Freud, 2010d, p. 45).
Paradoxalmente, a mesma civilização que permitiu que a violência fosse contida permitiu também que ela fosse reintroduzida na vida social sob a forma do Estado. Contudo, essa violência não é mais a violência da natureza, sem lei, equalizadora de todos em seu poder de destruir6. Após a intervenção do processo civilizador (pela organização da linguagem e pelo duplo processo de repressão/sublimação7), recorreu-se a uma nova violência, duplamente submetida à lei, seja porque o modo como ela se insinua supõe a regulação do que é o normal,
seja porque o que a caracteriza agora não é mais o acaso da natureza, a ausência da lei, o contingente, mas a violação da lei. Se na natureza não há critério que defina previamente quem deve morrer ou ter sua liberdade restringida, no Estado a lei estabelece as hipóteses em que (e o modo como) isso pode ocorrer, regulando sua própria aplicação e, portanto, os meios pelos quais a violência reentra no social. Em outras palavras, se na natureza a violência se identifica como pura força física, entendida como o poder de um organismo
de destruir outro, na sociedade a violência é antes a violação da lei, a quebra do contrato, a subversão dos pressupostos sob os quais a vida social é regulada de modo simbólico. Se a violência pressupõe sempre a coerção e a desigualdade de forças, seu traço específico na sociedade é a ruptura da lei, e não sua ausência (Costa, 1984, p. 92). Esse tipo de violência – por exemplo, do sistema judiciário e do sistema policial – é “um tipo de negociação que, através do emprego da força e da agressividade, visa encontrar soluções para conflitos que
não se deixam resolver pelo diálogo e pela cooperação” (Costa, 1984, p. 47).
Em seu modo de ser, a violência natural, contra a qual se insurge a violência do Estado, também se manifesta na vida social de várias maneiras – reaparecendo, apesar do esforço da violência do Estado tentar contê-la –, que vão do homicídio às desigualdades estruturais intransponíveis que negam direitos a determinados grupos na sociedade, podendo ser física, psicológica e simbólica. A violência física age sobre o corpo das pessoas imediatamente (sem a mediação da palavra), como no estupro e na lesão corporal; a violência psicológica atua
sobre o aparelho psíquico e inibe o funcionamento adequado de seu processo autoprotetivo; e a violência simbólica impõe enunciados sobre o real e leva alguém a “adotar como referencial exclusivo de sua orientação no mundo a interpretação fornecida pelo detentor do saber” (Costa, 1984, p. 75), de modo a submeter quem a sofre ao controle ilegítimo, muitas vezes imperceptível, por alguém. Poder-se-ia questionar sobre outras formas de violência, como a econômico-social, que relega seres humanos à condição de quase humanos, ou a
violência sexual, em que alguém se torna apenas meio para a satisfação da libido de outrem.
No entanto, a divisão da violência em física, psicológica e simbólica tem como critério o modo como ela atua sobre o indivíduo, ao passo que a violência econômico-social (assim como a sexual, e outros tipos de violência) tem como critério o bem (ou direito) sobre o qual ela recai. Tal é o caso, por exemplo, da violência sexual, que se pode exercer de modo físico, psicológico ou simbólico. Para o fim de discutir sobre a liberdade de expressão e o
discurso de ódio é a primeira classificação que interessa de modo direto, porque tem a ver com o modo como se exerce a violência, e não com seu conteúdo.
A violência, como infração da lei, assume muitas formas, e uma delas se efetiva por meio da expressão de ideias, mais especificamente mediante aquilo que se convencionou chamar discurso de ódio, definível como um discurso repugnante ou ofensivo cujo objetivo é induzir alguém a agir fisicamente de maneira antijurídica contra um terceiro, pelo simples motivo de ele pertencer a um grupo minoritário. A definição proposta, que afasta do discurso de ódio a ofensa e as palavras que machucam (ainda que estas possam causar o sofrimento de
alguém), decorre, de um lado, da análise da definição de dano apresentada por John Stuart Mill em seu livro Sobre a liberdade e, de outro, da análise dos fundamentos apresentados no célebre caso Brandenburg v. Ohio, decidido pela Suprema Corte dos EUA em 1969. Em Sobre a liberdade, Mill (2000) refere-se ao emprego de força para constranger alguém a agir contra sua vontade – ou ao emprego de um mecanismo que impeça a resistência de sua vontade – como o único tipo de comportamento que pode ser limitado legitimamente pelo Estado. No caso Brandenburg v. Ohio, Clarence Brandenburg foi condenado no estado de Ohio por ter convocado uma reunião da Ku Klux Klan por meio de cartazes em que se utilizavam palavras injuriosas, e tais atos eram proibidos pelas leis do estado. A Suprema Corte anulou a decisão estadual porque ela não conseguiu estabelecer a distinção entre a mera defesa de um ponto de vista (que seria protegida pela liberdade de expressão, ainda
que ofensiva) e o incitamento a uma ação antijurídica iminente (que configuraria um discurso de ódio não protegido pela 1a Emenda à Constituição dos EUA). Esse caso fixa como critério para a restrição a um discurso de ódio o chamado teste de Brandenburg, segundo o qual um discurso só deve ser impedido se preencher três condições: ele deve ter a intenção de incitar alguém a produzir, de maneira iminente, um ato que viole um direito de outrem, com alta probabilidade8 de produzir o resultado intencionado.
Nesse sentido estrito, em lugar algum do mundo o discurso de ódio é permitido (Waldron, 2012, p. 8, 29, 236) como discurso cujo objetivo seja induzir imediatamente alguém a agir fisicamente de maneira antijurídica contra um terceiro, pertencente a determinada minoria, pelo simples motivo de pertencer a esse grupo, porque isso reintroduziria a violência natural, afastada pelo processo civilizatório, utilizando “o direito que lhe foi concedido para destruir a ordem que funda essa concessão” (Costa, 1984, p. 37). De acordo com Brugger (2007, p. 118), a questão que divide judiciários, legislativos e juristas de diferentes países é: que tipo de discurso ofensivo ou repugnante faz parte da classe específica, mais restrita, de discursos de ódio – sendo, portanto, proibido –, e que tipo de discurso, ainda que ofensivo, se exclui dessa classe? Trata-se, pois, de uma questão sobre a extensão semântica do conceito, o qual não seria ambíguo, mas vago.
Para responder à indagação a respeito de que tipos de discursos devem ser denotativamente incluídos na classe dos discursos de ódio, é necessária uma teoria que permita compreender o que legitima um indivíduo a agir contra outros e que ao mesmo tempo possa fixar limites para essa ação. Boas candidatas para essa função são as teorias liberais da democracia. Teorias liberais da democracia10 costumam estabelecer que a autonomia individual e a agência humana (ou seja, a capacidade da vontade de um indivíduo de determinar causalmente
sua ação) são ao mesmo tempo o fundamento e o mecanismo que explicam a sociedade como ente artificial cooperativo, mesmo que limitador da ação individual. Para tais teorias, a ação dos indivíduos (entre as quais a liberdade de expressar-se) só pode ser limitada na medida em que viole a integridade (e, portanto, a capacidade de autodeterminar-se) de outro indivíduo. John Stuart Mill chamou a esse princípio limitativo da ação humana de
harm principle (princípio do dano):
A autoproteção constitui a única finalidade pela qual se garante à humanidade, individual ou coletivamente, interferir na liberdade de ação de qualquer um. O único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é garantia suficiente [para agir contra sua vontade] […]. A única parte da conduta de cada um pela qual é responsável perante a sociedade é a que diz respeito aos outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano (Mill, 2000, p. 17-18).
A questão controversa com relação ao harm principle é que tipo de violência é vedada por ele. Alguns autores liberais, como Waldron (2012), afirmam que ele deve ser entendido de modo amplo para abarcar não só a violência física mas também a psicológica e até a simbólica. Há, no entanto, boas razões para se limitar o conceito à violência física, a única que se produz imediatamente sobre o indivíduo, ou seja, independentemente de si próprio. Os conceitos de violência psicológica e de violência simbólica podem ser incertos demais para permitir sua limitação jurídica. Dizer incerto aqui significa que a irresistibilidade da violência pode ser avaliada de modo distinto por sujeitos distintos. É uma questão disputada se, ao insultar-me, alguém impede que minha autonomia se exerça de modo livre. No entanto, o exercício da violência física para impedir-me de agir (ou constranger-me a agir contra minha vontade) não é disputado no mesmo sentido: se alguém me mantém preso, desfere um golpe físico contra mim ou me violenta é algo que qualquer sujeito concordaria em reconhecer, mesmo que a violência física seja incapaz de produzir efeitos – por exemplo, se alguém visivelmente mais fraco que eu ameaçar-me fisicamente, ainda assim um terceiro poderia reconhecer sua ocorrência. Em outros termos, há uma objetividade na violência física que a violência simbólica e (certamente) a violência psicológica não compartilham. Por objetividade quer-se dizer que um evento se pode mensurar por mais de um ser (por exemplo, por termômetros distintos) e produzir a mesma avaliação (igualmente medirem, por exemplo, minha temperatura como sendo 39°). Dizer que a violência física pode ser avaliada objetivamente significa que, por exemplo, dois médicos distintos podem avaliar de modo idêntico a lesão produzida em alguém.
Por outro lado, no caso do discurso, a violência psicológica pode ser inseparável de qualquer discurso que me desagrade. Por exemplo: quando sou o proprietário de uma lanchonete numa praça e outro comerciante instala um negócio concorrente na mesma região, tenho motivos reais para temer pela segurança (pelo lucro) que meu negócio me proporcionava, e isso pode causar-me sofrimento11. Esse argumento está contido, de certa forma, na obra de Mill (2000, p. 144), para quem,
ao perseguir um objetivo legítimo, um indivíduo necessária e […] legitimamente provoca a dor ou a perda a outros, ou impede [a percepção de] um bem que estes poderiam razoavelmente esperar. […] A sociedade não reconhece aos competidores frustrados nenhum direito legal ou moral a ficar imune a esse tipo de sofrimento, e somente se sente chamada a interferir quando os meios empregados para alcançar o êxito são contrários ao que o interesse geral permitir, a saber: a fraude, a traição12 e a força.
O termo fisicamente, por conseguinte, importa para definir discurso de ódio porque, quando se pretende proibi-lo, o que se quer proibir são atos que induzam imediatamente à violência sobre o corpo e os bens de determinadas pessoas que pertencem a um grupo social. Por exemplo: com relação à homofobia ou ao racismo, o que se quer impedir é que pessoas tornadas vulneráveis por sua orientação sexual ou por sua cor corram qualquer risco em sua integridade física e patrimonial que possa ser ligado causalmente ao proferimento
do discurso de ódio.
Não é desses discursos de ódio (em sentido estrito) que trata o presente artigo, mas daqueles discursos que se identificam com palavras que machucam (Butler, 2021, p. 85), mesmo que possam prejudicar a autoimagem e o valor que certo grupo cria de si próprio (Waldron, 2012), mas que não tenham alta probabilidade de induzir imediatamente à violência física contra ele. A questão aqui gira em torno de discursos que sejam ofensivos –
“palavras que machucam”, como diz Butler (2021) –, mas que não preencham os requisitos do teste de Brandenburg para limitá-los. Nas próximas seções, demonstrar-se-á por que, de um ponto de vista da Psicanálise, pode ser útil permitir a mais ampla expressão de ideias em sociedades complexas, a despeito de serem ofensivas. Se esse pressuposto estiver correto, somente discursos que induzam imediatamente à violência física devem ser proibidos numa sociedade democrática; e pode ser nocivo, tanto para quem é odiado quanto para quem odeia, proibir discursos que, conquanto ofensivos, não tenham esse potencial. Contudo, só podemos entender isso compreendendo as raízes do próprio ódio social.
Narcisismo e violência