Experiência da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo e Tráfico de Pessoas
Danúbia Godinho Zanetti(1)
Marilene Gomes Durães(2)
Resumo: A escravidão moderna apresenta-se como um grande desafio para a sociedade contemporânea. A exploração da força de trabalho do indivíduo produz consequências sobre a saúde mental impactando projetos de vida. A abordagem proposta no presente texto leva em consideração a experiência da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo e Tráfico de Pessoas da PUC Minas em Betim, considerando o atendimento a uma senhora resgatada de trabalho escravo contemporâneo em ambiente doméstico. A abordagem metodológica utilizada foi a revisão bibliográfica e consulta a sites de instituições especializadas como a OIT e o Ministério do Trabalho e Emprego. A conclusão aponta para a necessidade do cuidado integral do sujeito resgatado de condições degradantes de trabalho.
Palavras-chave: Escravidão moderna. Clínica de combate ao trabalho escravo contemporâneo e tráfico de pessoas. Saúde mental.
Texto
Nos últimos anos, a problemática da escravidão moderna vem ganhando destaque no cenário nacional devido ao aumento dos casos de pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão e a sua divulgação nos mais diversos canais de comunicação, inclusive nas redes sociais.
Atenta aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a PUC Minas implantou, no Campus Betim, um projeto de extensão intitulado Clínica de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo e Tráfico de Pessoas em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, tendo iniciado as suas ações no ano de 2023. Através desse projeto objetiva-se prestar assessoria jurídica e atendimento e acompanhamento psicossocial a pessoas resgatadas da escravidão moderna.
A abordagem aqui proposta, leva em consideração um caso atendido pela Clínica de uma senhora que foi resgatada do trabalho análogo à escravidão no ambiente doméstico, em Belo Horizonte-MG.
Embora a escravatura tenha finalizado em 1888, a desigualdade social fomentada por essa prática ainda persiste atualmente. A escravidão contemporânea conta com subterfúgios mais elaborados e mais sutis e serve à exploração, tendo como vítimas, na maioria das vezes, indivíduos vulneráveis e invisibilizados na sociedade. No caso do trabalho doméstico isso é ainda mais evidente, como sinalizado pelo trecho a seguir retirado de uma coletânea de textos organizados pela Organização Mundial do Trabalho (OIT): “O trabalho doméstico segue, em pleno século XXI, como uma das ocupações mais vulneráveis à disposição de trabalhadoras que são, em geral, mulheres, negras, com pouca escolaridade e oriundas das camadas de mais baixa renda”. (Von Doellinger; Hahn, 2021, p. 8).
Além das marcas deixadas pelo racismo e outras distinções sociais, Le Guillant (2006) destaca o baixo prestígio social da profissão que afeta a autoestima dessas mulheres, deflagrando um possível potencial patogênico. Dejours (1992) também destacou fontes de sofrimentos estabelecidas na fissura da relação realização pessoal (sujeito) e tarefas concretas do trabalho, especialmente, em situações degradantes. Nesse sentido, pode-se afirmar que:
a organização do trabalho exerce, sobre o homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e desejos, e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais [agradável] conforme às suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isto é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada (Dejours, 1992, p.133).
O trabalho em determinadas condições pode promover adoecimento, eliminando sentidos e perspectivas de futuro. A partir das discussões teóricas acerca do trabalho e suas consequências na vida dos indivíduos, realiza-se uma análise psicodinâmica do trabalho doméstico e quando esse se transforma em trabalho análogo a escravidão.
Por se tratar de um estudo qualitativo foram adotados os seguintes passos metodológicos. Em primeiro lugar, realizou-se uma revisão sistematizada da literatura, a partir de um levantamento de materiais publicados como livros, artigos científicos e dados estatísticos. Os critérios para a seleção dos materiais foram trabalhos acadêmicos que abordam a psicodinâmica do trabalho (clássicos e contemporâneos) e trabalhos acadêmicos que adotaram descritores como trabalho análogo a escravidão e adoecimento mental.
Na sequência, destacam-se três categorias analíticas para as considerações e reflexões sobre as condições de trabalho e a precarização da existência quando a pessoa se encontra em condições análogas à escravidão: 1) condições patogênicas em relação ao trabalho; 2) expropriação da existência no local de trabalho; 3) ausência de projetos de vida, devido às condições degradantes do/no trabalho.
As principais observações clínicas e psicossociais em relação à essa trabalhadora em condição análoga à escravidão indicam: o sofrimento mental iniciou-se quando ocorreu um bloqueio na relação entre a trabalhadora e o “patrão”, ou seja, quando esta trabalhadora já utilizou de todas as suas defesas, sejam elas intelectuais, psicoafetivas ou de aprendizagem para adaptação às tarefas no âmbito do trabalho. Observou-se também uma dificuldade, geralmente de ordem emocional, para o rompimento com as tarefas abusivas, tendo em vista a relação de afeto adquirido com o tempo ou a sensação de “obrigação” por um “favor” que foi prestado no passado. Por fim, constatou-se que as condições materiais de vida impactam o rompimento ou o retorno ao trabalho que produz sofrimento físico e mental, mesmo em condições degradantes. As desigualdades sociais aumentam a alienação, a sujeição e a exposição às condições que não são dignas, ferindo os preceitos legais ante a garantia de direitos.
REFERÊNCIAS
DEJOUR, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. Tradução de Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. 5 ed. Ampliada – São Paulo: Cortez – Oboré, 1992.
LE GUILLANT, Louis. Escritos de Louis Le Guillant. Editora: Vozes, 2006
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Os objetivos de desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br. Acesso em 25 abr, 2025.
VON DOELLINGER, Carlos; HAHN, Martin Georg. Apresentação. In: PINHEIRO, Luana; TOKARSKI, Carolina Pereira; PHOSTUMA, Anne Caroline. (Org). Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília: OIT, IPEA, 2021. Disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11044/1/Entre_relacoes_de_cuidado.pdf. Último acesso em 25 de abril de 2024.
(1)Danúbia Godinho Zanetti – Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Doutorado em andamento na área de Psicologia Polícia e Pautas Indígenas, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Atualmente coordena o curso de Psicologia da PUC Minas Campus Betim. Faz parte da equipe docente da Faculdade de Psicologia da PUC Minas. Os principais temas de estudo são: Psicologia Decolonial; Psicologia Política; Políticas Públicas, Fenomenologia Decolonial; Clínica Decolonial. ( http://lattes.cnpq.br/6741821327104828)
(2)Marilene Gomes Durães – Doutora em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas. Mestre em Direito Comunitário e de Integração pela PUC/Minas. Professora Adjunto I da PUC/Minas. Possui experiência na área do Direito com ênfase em Direito Internacional e Direitos Humanos. Professora e pesquisadora associada à UNILIVRECOOP com experiência em realização de diagnóstico sobre migração e refúgio no Estado de Minas Gerais. Advogada. Membra da Diretoria da APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) Betim. Pesquisadora de temas relacionados ao Direito Internacional e Direitos Humanos Fundamentais com ênfase em direitos das minorias como as pessoas em privação de liberdade, comunidades quilombolas, etc. Coordenadora do curso de Direito da PUC Minas em Betim desde fevereiro de 2011. (http://lattes.cnpq.br/8731402910626810)