O tema da felicidade sempre suscitou muitas reflexões e controvérsias. As nossas considerações não têm intenção de nelas aprofundar, porque se apresentam antes na forma de indagações do que de respostas conclusivas. Nesse sentido, podemos perguntar:
A felicidade é possível? Há provas da sua existência? Como defini-la e, se o for, seria uma definição universal, válida para todas épocas e culturas? Ou ela estaria aprisionada numa vivência individual? Como obtê-la? Todos nós, de uma ou outra forma, em um ou outro momento, fazemos a nós mesmos essas perguntas. Elas não podem ser respondidas facilmente e muitos pensadores buscaram alguma resposta ou apontaram algum caminho de solução. Mas, dentre eles, vamos sinalizar para dois pensadores que se mostraram bastante céticos em relação à possibilidade de alcançar a felicidade.
O primeiro, Arthur Schopenhauer (1788-1860), foi um filósofo alemão que se tornou célebre por sua visão pessimista do mundo. O segundo, bem mais conhecido, Sigmund Freud (1856-1939), foi o fundador da psicanálise, teoria que enfatiza o conflito psíquico e como as nossas intenções conscientes são subvertidas pelas forças pulsionais. Ambos consideraram a felicidade como algo efêmero e fugaz.
Schopenhauer consagrou muitas páginas a vivas descrições de inúmeras situações de sofrimento e da miséria do ser humano. O pessimismo de Schopenhauer opera uma ligação indissolúvel entre a vida e a dor. Para ele a “Vontade” era o autêntico significado do universo e ela não era uma deliberação racional, mas era presa numa corrente de desejos e insatisfações infinitas, um movimento cego que acena com prazeres que acabam sempre em frustrações, tédios e decepções. O desejo infinito e a crescente insatisfação constituem a gênese do pessimismo schopenhaueriano segundo o qual a felicidade é ilusória, mas é impotente para ocultar a nossa condição miserável. Para Schopenhauer, o mundo, em sua perspectiva metafísica, é como um grande organismo vivo que jamais chega a uma finalidade última e jamais se realiza efetivamente, pois o seu princípio não é um ser estável, mas uma tendência que se repete incessantemente sem jamais ser satisfeita. O mundo é uma obra em eterno andamento.
Em sua “Metafísica da Natureza”, Schopenhauer descarta completamente a perspectiva teleológica:
“…a vontade, em todos os graus da sua manifestação, de baixo até cima, tem falta total duma finalidade última, desejar sempre, sendo o desejo todo o seu ser, desejo que não termina quando objeto é alcançado, incapaz de uma satisfação última, e que para cessar tem necessidade de um obstáculo, uma vez que, por si mesmo está lançado no infinito” (SCHOPENHAUER, 1819, p. 407)
Para Schopenhauer e Freud, todo desejo nasce de uma falta, de um estado de necessidade, portanto de um sofrimento. Na medida em que se realiza um desejo, nós acreditamos: eis a felicidade! No entanto, nenhuma satisfação dura, ela é apenas o ponto de partida para um novo desejo. Para cada desejo satisfeito surge uma infinidade de outros desejos clamando por satisfação. Não há repouso, nem trégua e nessa busca incessante, a verdadeira felicidade é impossível. Freud parece reeditar o pensamento de Schopenhauer no que tange à problemática da felicidade. O pensador vienense também considera que
” a felicidade no sentido restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica” (FREUD [1930{1929}]: 95).
O argumento apresentado por Schopenhauer e por Freud sobre o desejo e a felicidade parece ignorar alguns aspectos cruciais da experiência humana que podem oferecer uma visão mais equilibrada da vida. Se é verdade que o desejo pode surgir da falta, ele também pode ser uma força criativa que impulsiona o ser humano a realizar, transformar e transcender. A busca por algo mais não é necessariamente um sinônimo de sofrimento, mas pode ser entendida como uma expressão de nossa capacidade de sonhar, planejar e construir sentidos para a existência.
Mas, não seria possível algo como uma “felicidade clandestina”. O conto de Clarice Lispector, assim intitulado, narra a história de uma menina apaixonada por livros, que sonha em ler o romance “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. A menina só tem acesso ao livro porque a mãe da garota que possui o livro, obriga a filha a emprestá-lo. Finalmente, desse modo, a menina recebe o exemplar e experimenta uma felicidade intensa e secreta ao poder ler o tão desejado livro. A menina, apesar de provavelmente não ter lido Schopenhauer ou Freud, conhece o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco“. Assim, para prolongar a felicidade a menina deixa o livro no quarto e finge esquecer que o possui, só para redescobrir que o tem em mãos. Assim, a menina constrói uma estratégia para experimentar pequenas doses de felicidade.
Mas a felicidade está necessariamente ligada a um objeto almejado? Não seria possível diferenciar felicidade de satisfação ou do prazer? Não poderíamos pensá-la como um bem partilhado? Certamente a satisfação de um desejo é sempre transitória, mas isto não anula a profundidade da experiência e nem é a palavra final sobre a realização humana. O desejo de vida pode ser renovado e aprendido nos permitindo alcançar uma felicidade que, embora imperfeita, é profundamente significativa.
Por Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Moreira
FREUD, Sigmund. Mal estar na Cultura. ESB,
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1971.
SCHOPENHAUER, A.(1819) O Mundo como Vontade e Representação. Tradução M. F. Sá Correia. Porto/Portugal: Rés, (s.d.).